não tem tapa na cara mais objetivo que ver seu cachorro se debatendo na propria merda e mijo no chão do lado da sua cama. é um chamado pra te tirar de qualquer idiotice que tava pensando e te por na terra, no prático e no que existe.
a casa parece um cenario de guerra, com escombros do que foi uma tentativa de alguma organização, e os sobreviventes que lá se abrigam chafurdando em busca de algo que se coma e se beba, um canto mais limpo pra dormir. mãe, irmã e tia, qualquer uma que entre ali vai suspeitar do descaso desse membro sem rumo da familia, que aparentemente abandonou a propria higiene. não abandonou mas talvez chegou perto.
o animal a cada ataque convulsivo perde um pouco mais da sua personalidade. personalidade é uma caracteristica atribuida pelo humano que interage com o animal. o comportamento animal é incompreensivel. no máximo tentamos entender, nos acostumamos com o comportamento irracional caracteristico de um animal em particular. o mais consternante é ver esse comportamento irracional mudar.
um 'web-quadrinhista' polemico projeta que no futuro a criação de animais de estimação irá se equiparar com a escravização de humanos. se não é escravização ainda é algum tipo de condicionamento como sindrome de estocolmo. o homem ve o animal como se ele o adorasse, o animal sabe quem é a fonte de comida e quando ela está disponivel, sua vida depende disso. toda a vida do animal, alias, gira em torno da presença dos humanos que moram com ele. da mesma forma que quando você sai de casa pra cuidar da sua vida o cachorro para de viver pra você, ele para de viver, pra ele mesmo. nada pode fazer alem de esperar a chegada do sol da sua vida. uma estreita concepção de vida.
argos cagou forte hoje. a trivialidade da situação implica apenas que tenho que escolher, dormir cheirando uma merda fumegante, deixa-la secar onde está; ou limpar o mais rapido possível e tentar dormir um pouco melhor.
ele acorda dos espasmos acostumado, não tenta inutilmente correr, já sabe que as patas traseiras não respondem de imediato, espera ofegante com a cabeça apoiada nas patas dianteiras, ofegando forte. não para de ofegar. o costume é por repetição, não por razão. quem volta é um animal cada vez mais selvagem. seu "rosto" mostra expressoes que conhecemos, mas nos momentos errados. é outro animal. levanta com fome, fareja todos os cantos, olha para mim esperando comida, falta muito pouco pra esse animal buscar formas mais proativas de se alimentar, ate onde a velhice permitir. já dei a comida da noite. decido não dar novamente.
havia algumas semanas que ele nao convulsionava, antes desse hiato quando sofria um ataque, tinha um padrão, que felizmente fazia o ataque acontecer fora de casa, onde a merda e o mijo poderiam decantar a luz do sol a distância dos meus sentidos. dessa vez ele correu pro lado errado quando o cronometro bateu no 10 segundos para a panela de pressão na sua cabeça estourar.
ironia: isolei a area para limpar, um cão feral, ou um bebe, ou ambos, se a cabeça desse animal carrega ideias, a ideia de estar distante de mim era insuportavel. veja e sabão em pó disolvem a merda em uma pasta rala, a vassoura piaçava homogeiniza a mistura que atinge uma cor esbranquiçada, o excesso de quimicos por centrimetro quadrado faz a area ficar mais clara imediatamente. esfrego o chão ao som dos ganidos de solidão do animal. idoso, desamparado. carente.
e na minha cabeça, o que se passava? ironia: exausto da zuada, golpeio sua cabeça com um tapa. recua, senta em silencio, me olha sem compreender, obviamente sofrendo minha ausencia e agora a repreenção. imagino o choque da minha mao com sua cabeça sacudindo o tumor bem ali onde bati. se violencia é uma forma de comunicação, mesmo assim não há dialogo muito duradouro com um animal idoso, e ainda cujo cerebro já está sendo violentado por dentro constantemente por um cancer.
um dia imaginei que argos fosse meu retrato de dorian gray, absorvendo minhas doenças e meus pecados. hoje acho mais que estamos juntos afundando o barco da sanidade, (claramente um exagero)
me vejo escrevendo um email de suplicas de compreensão das minhas tribulações para minha mae enquanto levo roupas para a maquina de lavar. o mato que toma o quintal me lembra das reclamações desta com a minha assiduidade na limpeza deste. componho um email imaginário extenso. quero ser reconhecido, recompensado, aliviado de fardos, mas percebo o engenho do meu subconsiente, formulando todo um escandalo por coisa pouca. ainda assim desejo que cessem as cobranças,
comparar vidas humanas é futil, vale lembrar, até onde buscar ser entendido também é? não dá muito pra entender outra pessoa alem dos termos da sua propria experiência e do que você absorve das dos outros. seu unico referencial é a si mesmo.
argos se mantem a 5 centimetros de mim o tempo todo, sempre que dá, na minha frente. geme em ganidos curtos, baixos e constantes, a ponta do seu nariz expandindo e voltando no ritimo do chororo e da sua respiração. irritante. sinto vontade de chutar. sei que não quero causar dor, nem acertar o animal. quero expelir de mim a frustração da mensagem não transmitida, da comunicação infrutifera, fazer isso da forma mais animalesca. ironia.
o chamado para a realidade é como um despertador, ou café, com o tempo você se acostuma e ele começa a surtir menos efeito, é como a ressaca moral pós embreaguez e gafes, a cada instancia menos efetivo, no momento que senti a merda em maos separando-me dela apenas pela fina camada de plastico do saco que usei, já tinha decidido que não iria ficar em casa, apos juntar um pouco de lixo espalhado pela casa que sei seriam alvo das farejadas do cachorro, declarei terminado o lapso de providencias domesticas, me vesti como se fosse pra o trabalho, que é o minimo de vestimenta para andar de moto mesmo.
enquanto formulava narrativas sobre mim mesmo e cogitava se era melhor o presente ou o passado, a primeira ou a terceira pessoa, decidia também que iria sanar o desejo de comer alguma porcaria e encher o bucho para dormir, e ai talvez escrever sobre tudo que estava na cabeça. confort food. ou talvez apenas food. ou talvez apenas confort. a vontade de conforto entrou em mim no mesmo momento que a merda do cachorro saia. decidi que sair de moto era a unica opção, iria passar pela mcd ver se tava aberto, em seguida conferir os postos, por ultimo carlitos. iria parar no primeiro aberto.
alguns confortos se tornam estorvos, objetos desgastam, perecem, tem que ser trocados. o objetivo era comer, fui lembrado quando subia a ponte da torre da verdadeira liberdade de pilotar. meu trajeto faz uma curva espiral, que no final volta a origem como metade de um infinity loop. em cima da moto nenhum problema existe - é o que eu gostaria de poder dizer - corrigindo: em cima da moto todos os problemas se vão, exceto o medo de cair em um buraco. se existem estações em recife, essa é a estação de mais buracos. faço a grande curva de descer a ponte e passar por debaixo da mesma, sem me preocupar com carros e limites de velocidade, mas quando o reflexo me fez olhar o ponteiro nao estava muito acima de 60. na segunda curva, a mcd fechada. parei no posto, comprei confort food e comi, junto com red bull, que em nada me impediu de dormir mais tarde.
precisava era sair dali, e me impressiono ate agora, pois escrevendo descubro de novo quao inconciente é a vontade. "não aguento".
conforto é a palavra imperceptivel em torno da qual gira silenciosamente uma multitude de coisas do dia a dia. nos distanciando do nosso ser animalesco e abusando dos nossos sentidos. todo cachorro é um confort dog, voce quer ter aquele escrevinho sorrindo pra você feliz com sua chegada, dependente de você. eu ia continuar explanando os confortos, mas saciei minha vontade de escrever.