o homem sentou ao balcão do pequeno estabelecimento onde costuma almoçar. chama de almoço por aquilo que come, não pela hora que come. ele se questionou que, se ele fosse narrar essa ação, diria ele 'sentou no balcão' ou 'sentou ao balcão'? ele não se importa muito com esse tipo de coisa, ele diz 'no' quando é pra dizer 'ao', mas as duas formas estavam soando estranho, sabe, quando você fala na sua mente as palavras, as vezes até em voz alta, pra ver se sai de um jeito agradável.
o local era pequeno, uma cozinha, um balcão, umas mesas na rua. não dava pra ver ninguem na cozinha, mas a luz estava acesa. o homem se anunciou. todo dia, na hora do seu almoço, havia um momento de reflexão, sobre como endereçar as atendentes da lanchonete. ele só sabia, mais ou menos, o nome de uma atendente. o homem disse 'boa tarde', o que quase não era mais, em direção a cozinha, e uma moça, a mais nova das atendentes saiu. o homem hesitou, ele lembrou que tinha que pedir o cardápio.
a lanchonete era agradável e a comida era boa, mas o que ele sentiu nesse momento, é que seu específico problema de comunicação se dava ao fato das atendentes serem as cozinheiras, e não estarem sempre ao alcance de um contato visual, nem entendiam o contato visual que serve pra pedir alguma coisa num restaurante sem ter que chamar ninguem. o homem sentiu isso porque quando a moça se aproximou do balcão ela ficou esperando, e ele ficou esperando também. ele esperava que ela o oferecesse o cardápio, ela esperava que ele pedisse algo, incluindo o cardápio. para ele é normal que o cardápio estivesse ao alcance ou fosse entregado, sem ser pedido.
o homem pegou seu mp3 player e seus fones de ouvido e voltou a ouvir música. a música que estava ouvindo antes de se exercitar na academia. ele lembrou, uma vez na academia, seu treinador pediu pra ele escolher a música. ele não sabia o que escolher, assim na hora. mas ele também não escutava muito o tipo de música que se põe em academia, uma coisa mais popular, mais regional. ele levou esse pensamento pra casa, e concluiu que se fosse oferecida a oportunidade de novo ele iria por seu mp3 para tocar algumas músicas que ele gosta.
isso é delicado. ele não podia deixar no random [leia-se randóm], o random tem um mal costume de colocar músicas esquisitas na hora que outras pessoas estão ouvindo suas músicas. tinha que escolher um album. ele escolheu sawdust, de the killers. o album que ele estava ouvindo hoje, one armed bandit, de jaga jazzist, não é o tipo de coisa que seria bem recebida na academia. o homem pensou que é curioso como chamamos esse conjunto de músicas que é o album de cd, só porque vinha num cd, e continuamos de chamar de cd mesmo que escutemos nos mp3 players, que são chips, não cds. tem bandas que nem usam mais esse formato de album, pra lançar suas músicas.
outro homem chegou no balcão. a moça tinha acabado de por a mesa, o balcão, para o homem e voltou para a cozinha. de costas, a atendente não viu o outro homem chegar. o outro homem não via a atendente de onde estava. o outro homem deu três tapas na mesa para iniciar a conversa. o homem viu o outro homem e o achou esquisito. seu rosto, queixo retraido, bochechas flacidas, que combinam com o queixo retraido para estender as dobras que vem do nariz e passam pela boca, geradas por anos de risadas. sua barba branca com partes simetricamente pretas, o pescoço e barriga que concordavam com as bochechas.
para o homem, o outro homem já teve que solucionar o seu problema de como chamar atendentes, seu gesto, as tres tapinhas, no entanto, ainda nao parecia muito natural dele. para o homem estava faltando ao balcão o objeto que o outro homem deveria ter estapeado, um daqueles sininhos de recepção. o outro homem carregava na mao esquerda um pote. o homem após olhar para o rosto do outro homem, olhou para o pote que carregava. parecia um pote de mostarda, meio vazio. o outro homem disse para atendente 'pode bater isso aqui no liquidificador?' ela olhou para o que era isso aqui, e disse 'com água?' ele disse 'é' ela disse 'um copo só?' ele disse 'sim'. nesse momento o homem olhava para a interação. com o movimento do pote, o que ele via deixou de ser mostarda e virou um pó, e o pote era evidentemente um pote de geléia daquelas que alegam ser de outro país.
o homem percebeu um pequeno constrangimento do outro homem na forma que ele retornou o seu olhar. um pequeno constrangimento de quem esta se acostumando com a ação que o constrange, ou o homem estava só se colocando na situação do outro homem e depositando nele suas reações para o que ele vivia. o homem certamente ficaria constrangido de levar um pote de geléia com leite em pó para ser misturado com água na lanchonete. o homem evita esse tipo de coisa, de uma forma que ele tenta justificar por estilo de vida e decisões filosóficas. para ele isso faz sentido, mas quando estilos de vida diferentes se embatem, o estilo do outro é só um conjunto de caracteristicas bestas e estranhas, ele sabe disso.
o outro homem estava sentado em uma mesa. o homem estava gostando do que ouvia, sua música, do que comia, seu prato havia chegado, e do que bebia, seu suco. o homem refletia sobre como ele poderia naquele momento estar fazendo barulho ao mastigar, ou ao cortar com os garfos, ou por gostar da comida, ou com o canudo no suco, ou com o bater das pernas no ritmo da música. o homem prefere não emitir esses sons, mas como a música o inibia de ouvir se estivesse produzindo algum som, ele não estava preocupado. o homem ficou impressionado como o se importar depende do sentir.
o homem viu umas senhoras sairem da academia, que era do outro lado, o outro homem as cumprimentou quando elas passaram, para o homem a conversa era uma típica conversa de velhos contentes, e uma típica conversa en passant, sem conteúdo, e com conteúdo, mas só uma formalidade. as velhas senhoras sairam de uma dessas aulas de academia, que só velhos e mulheres, faziam, e que homens não faziam, porque só mulheres e velhos faziam. essa era a opinião do homem, e ele se percebeu detentor de varias opiniões, frágeis e sem fundamentos como ele as vezes julga que são as opiniões das outras pessoas, e que nenhuma delas lhe servia de alguma coisa. ele pensou que algumas coisas ele poderia sentir menos e pensar menos.
o homem terminou de almoçar e já havia escurecido. ele saiu e foi para sua casa a pé, no meio do caminho ele percebeu que a caminhada era boa e que a música era muito boa e desejou que sua casa fosse mais longe, para extender esse momento. mas a música também iria acabar eventualmente, e ouvir de novo não seria a mesma coisa que a primeira vez.
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