o garfo treme descontroladamente. é o que eu ia escrever, mas percebi então, que quando se trata de situações limítrofes, as hipérboles devem ser usadas com cuidado, pois a coisa está muito perto de deixar de ser um exagero.
a velha corcunda se esforça para exercer controle sobre os utensílios. o garfo treme, não descontroladamente, mas tá muito perto. laboriosa atividade de comer duzentas gramas de comida espalhada pelo prato.
a comida foi espalhada no prato por uma idosa que, se não na cabeça, nas mão ainda tem firmeza. o queijo frito estava mole, a macaxeira estava dura, deve ter dado trabalho para a corcunda mas curiosamente dessa vez ela não reclamou. não a percebi reclamar. essa idosa amassou e espalhou a comida e depois foi embora.
com o garfo de lado ela separa uma parte da massa no seu prato, ao girar o garfo ele treme mais ainda. imagino que o maior esforço seja, na tremedeira, evitar que ele encoste no prato e faça o tilintar de porcelana com metal durante toda a torturante sessão alimentar. o movimento de pegar a comida já separada com o garfo e faze-la encontrar o sistema digestivo acontece quase todo com o antebraço e a boca, o punho gasto está todo concentrado em segurar o utensílio e se mantem rijo.
devemos parar um momento para apreciar a resistência desse organismo. a boca transforma a massa em pasta, essa parece ser a parte mais fácil, o que não quer dizer que é sem trabalho, a coisa de mastigar e engolir uma garfada rasa de alimento para essa senhora. lábios, mandíbula, dentes, língua, esófago, está tudo funcionando. ela ainda é capaz de processar o que engole e fazer retornar pelas suas veias e nutrir seus tecidos. um dia essa nutrição não vai ser suficiente e os braços não mais conseguirão levar alimento a sua boca. sem isso o organismo não vai servir mais a si mesmo.
enquanto a boca funciona e mostra fome, a coluna parece não ter mais pra onde desmoronar, cada vertebra derrubada em cima da outra de forma que a coluna parece ter caido em si mesmo.
metáforas aqui, de uma coluna que aponta para o chao como se quisesse voltar a terra, ou de uma coluna que aponta para o lugar do descanso final que é embaixo do chão, são alegorias que remetem a anedota bíblica da criação do homem a partir do barro, e ao simbolismo do enterro. enquanto toda essa simbologia seja forte nós devemos evita-las, pois, a anedota já está demais ultrapassada e o fato é que do hábito de colocar pessoas debaixo da terra quando elas morrem sobrou apenas a simbologia mesmo, o destino dessa velha quando morrer vai ser uma gaveta no santo amaro, uma visita solene com poucos familiares, e alguns anos depois outra visita mais deserta e mais desagradavel pra ver se a carne já soltou dos ossos. se a coluna dela fosse apontar para o lugar do descanso final, iria apontar pra cima, terceira ou quarta fileira de gavetas de um daqueles corredores.
o que essas metáforas querem dizer de um jeito bonito e profundo é que isso é uma coluna torta pra caralho, e o fato é esse mesmo.
ossos porosos, no hábito diário de apoiar-se na mesa a ulna de cada braço deve ter cedido onde encosta gerando uma depressão. apoiado ali os antebraços içam pelos ombros o resto de coluna colocando a boca alguns centímetros mais perto da mesa.
o garfo repousa no prato, a mão vai até a xicará de café, levada pelo antebraço que gira como um guindaste em volta do ponto afundado da ulna que encosta na mesa. elevada do pires, a xicara é o que treme mais. a superfície do líquido se mantem paralela a mesa, como se impassível a tremedeira, enquanto as bordas da xícara se aproximam e se afastam dele, num movimento perigoso para a toalha de mesa e a macaxeira amassada que passam por debaixo dela no caminho a boca. mover o pescoço é esforço demais, a cabeça não gira para ver a xicara, apenas os olhos seguem o caminho que a mão procura fazer enquanto a boca se prepara pra receber o líquido. mais tarde a xícara vazia, o ultimo gole do café vem leve para a mão cansada e desce com a sensação de dever cumprido. dever de saciar um corpo que ainda pede alimento.
um esforço que parece valer pouco, quando você olha para o prato e ve metade da comida espalhada em tentativas fracassadas de serem espetadas ou elevadas pelo garfo, se esfarelaram em pedaços pequenos que não não foram reunidos para mais algumas garfadas. esses braços vão deixar de funcionar antes do resto do corpo, levando com eles os resquícios de autonomia e prazer de saciar sua fome você mesmo, mesmo admitindo que outra pessoa pos a comida no seu prato.
a velha se mantém à mesa. não vejo expressões em seu rosto, um olhar vazio, neutro, de músculos cansados tentando o máximo ficar em repouso. quando algo passa pela cabeça dela as sobrancelhas começam a falar antes da boca, enquanto os olhos encontram o seu interlocutor ou o objeto do seu interesse. até os olhos parecem se mover de vagar e com esforço. com esse olhar em branco ela percorre suas companheiras de jantar. com ela, 4 mulheres, a velha corcunda, a avó, a mãe, a criança.
vamos exagerar um pouco a realidade para dizer que as mulheres sentam a mesa numa posição que parece as colocar em pontos de uma espiral em proporção aurea, a partir desta, a mais velha, percorrendo as seguintes por idade decrescente, abismo da derrota humana. todas as mulheres olham para a mais jovem, uma criança, a criança olha para todas mas seu único foco é a si mesma, o centro da atenção. se essas mulheres olhassem para o lado esquerdo veriam seu passado, se olhassem para sua direita veriam seu futuro, a corcunda veria o nada, o futuro de todas.
a criança faz uma serie de perguntas a sua vó, que ainda é jovem. a beira da comunicação adulta, o entendimento de mundo da criança é feito de retalhos do que ela percebe do mundo, sua percepção arranca significado do parelhamento de qualquer informação A com informação B enquanto a linguagem rudimentar não alcança a infinidade de detalhes e significados misturados que um adulto ousa fingir dominar. esse cerebro jovem no formar significado acaba revelando realidades que nossos cerebros não veem mais quem é sua mãe? minha mae é acirema. quem é sua filha? meu filho é ednaldo. nãaao, sua outra filha, a filha pequena. eu não tenho filho pequeno. e ela? ela é minha tia. não, ela é sua filha.
a criança rasgou o tecido de toda a construção social das três senhoras a mesa com ela e viu a velha como um semelhante, uma filha, alguem que recebe cuidados, e fez isso com a menor quantidade de significados possível. se atendo a observações que só seu cerebro captou e que as palavras que essas mulheres dizem nunca proferiram diretamente.
com sua agulha e fio para atar um nó unindo criança e velho ela rasgou a cabeça de duas senhoras, a corcunda e a avó. essa agulha errou a cabeça da sua mãe também à mesa, por ser muito nova e não ter sentido na pele ainda a debilitação agravante da idade. com esse rasgo se fez silêncio. ninguém se expressou mais. eu não imagino a velha pensando muitas coisas, mas imagino que esse rasgo causou uma dor, e no silencio e na dor da derrota dessa situação para que ninguém se planeja, de se ver como inválido, a velha carregou sua tremedeira ao longo da sala de jantar com o seu andador colorido até a cadeira conformada pelo seu corpo onde despeja seus ossos e relaxa a maior quantidade de músculos possível, como de costume. ligou a tv com o menor movimento do indicador para receber a morte adiantada do seu cérebro por meio da programação do momento e poder esquecer a dor revelada pelas palavras pontudas da criança.
mas dessa verdade ninguem se esconde constantemente, e a avó, efetivamente e entitulada como mãe da velha, carregando esse fardo é que não tem como esquecer. ela aproveita um pouco do silêncio enquanto sua tia-filha não morre e não chega sua vez.
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